Democracia Profunda: o que você precisa para vir conosco?

Regina Pazzannese
10 min readJan 18, 2023

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Como as tecnologias de facilitação podem contribuir com a missão de governar para 215 milhões de brasileiros após quase uma década de polarização.

Grupos contra e a favor do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, no dia da votação na Câmara — Foto: Juca Varella/Agência Brasil

A credibilidade que parcela considerável do país tem dado a notícias falsas (fakenews) está associada ao descontentamento das populações de grande parte das democracias ocidentais por suas escolhas, ora elegendo governos progressistas, ora conservadores. Rastros de um mesmo sintoma, tratam da insustentabilidade de um modelo de tomada de decisão binário (ou um, ou outro), em um formato de democracia que urge ser reinventado em toda a sociedade ocidental contemporânea.

São dezenas de experiências que observamos há pelo menos duas décadas e isso tem se intensificado na América Latina, do Norte e na Europa. Se metade de uma população pensa de forma oposta à outra, há muito mais em jogo e a ser negociado do que uma eleição nos moldes atuais é capaz de dar conta.

Nossa “binária democracia” não tem mais fôlego para lidar com a complexidade de nossa pluralidade social, ao contrário, ela empobrece a perspectiva e os interesses da diversidade de vozes que compõem nossas comunidades e nações, que não vêem lastro de pertencimento em seus representantes.

Em artigo de 2016, analisei o fenômeno da não representatividade ao mapear o resultado das eleições municipais e notar a vitória de ninguém em prefeituras de dezenas de municípios brasileiros. Nesses casos, a soma de votos brancos e nulos venceu em cidades como São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Sorocaba, Ribeirão Preto e Porto Alegre. Como ninguém se manifesta para ser empossado, vitorioso ficou o 2o lugar, ocupando a cadeira de prefeito por WO.

Esse é o contexto em que vemos aumentar o cenário das polarizações. Há casos em que a diferença entre escolhas diametralmente opostas tem adquirido margens de 1% a 3%, em diversos exemplos de votações, sejam elas presidenciais, em plebiscitos ou em governos locais.

O alerta não é uma sugestão de que a democracia representativa acabe, contudo a cada dia que ela não se reinventa, mais fakenews e narrativas totalitaristas e conservadoras ocupam o espaço das percepções e imaginário sociais, na tentativa de capturar corações e mentes

Em Sejamos todo/as Facilitadores apresento um breve panorama de como novas tecnologias de linguagem e práticas de tomada de decisão tem ocupado experiências nacionais e internacionais pela qualificação da representatividade, a partir do voto universal. Temos atualmente tecnologia social à disposição, sendo praticada e testada há mais de meio século para promover formatos contemporâneos que fortaleçam a democracia representativa.

A Democracia Profunda, por exemplo, é uma abordagem para tomada de decisão em ambientes de conflito e polarização. O método parte da premissa de que está justamente no “Não” a sabedoria necessária para compor com a decisão vencedora uma saída menos binária, que só agrade e corresponda a um dos lados.

Trato aqui especificamente sobre a prática do 4o Passo da Democracia Profunda Lewis, que encaminha uma oportunidade de ouvir com mais atenção quem perdeu a votação.

Pergunta-se ao perdedor: O que você precisa para vir conosco?

E por que razão fazemos tal pergunta? Por entender que as necessidades de quem perdeu também são válidas e legítimas. A Democracia Profunda pretende acolher essas vozes, desde que dentro do parâmetro da decisão vencedora.

Pelas lentes da Democracia Profunda, as fakenews, assim como, a invasão dos 3 poderes no 8 de Janeiro e o levante do conservadorismo neopentecostal são lidos como grandes e ruidosos “NÃOs” inconscientes da sociedade.

Resistências declaradas que representam apenas a ponta do iceberg de águas profundas a guardar sabedorias que - superados os estigmas, podem nos trazer leituras da realidade mais precisas e por isso respostas mais adequadas às fragilidades e inconsistências culturais e sociais que fazem parte da história de qualquer sociedade.

Estas manifestações de resistência à escolha pela via democrática do Governo Lula, por exemplo, trazem vestígios de ressentimentos, medos e inseguranças sociais que têm sido tradicionalmente encarados por governos conservadores e progressistas com desconfiança e na defensiva, a exemplo das jornadas de Junho de 2013.

A questão é que quando interpretamos a realidade com uma visão binária, reproduzimos de modo inconsciente uma cultura autoritária e patriarcal que, assim como o bolsonarismo, divide o mundo entre aliados e inimigos, gente do bem e gente do mal, malucos e sãos (e até gente de Deus versus endemoniados).

A ministra Anielle Franco em artigo recente à FSP se coloca o desafio “de tentar furar a bolha e conversar com as pessoas que pensam diferente” dela.

A reflexão da Ministra está alinhada na nossa perspectiva. Garantir soluções, respostas institucionais e aplicação de políticas públicas que entendam estas manifestações de modo não maniqueísta, contribui para ampliar a visão e “furar bolhas”, exercícios básicos de uma democracia.

Enquanto não conseguirmos escutar o LOBBY múltiplo e as necessidades por trás de qualquer manifestação manteremos uma lógica de exclusão.

Obviamente que quem comete crimes, destrói patrimônio público e participa de levantes pró golpe de Estado deve ser punido pela lei. Mas nunca foi tão necessário seguir os ensinamentos bíblicos de Jesus sobre separarmos o joio do trigo (Mateus 13.24–30, 36–43).

Há outros modos de lidar com ataques à democracia e manifestações contra governos, para além da punição legal. É o chamado para uma nova escuta sobre as necessidades das comunidades, para adicionar potência e complexidade a um modelo de representatividade que corresponda a uma democracia digna de século XXI.

Qualquer sinalização de um “NÃO” social, seja mais sutil ou violento é um chamado para um reconhecimento, que necessita de ferramentas e abordagens, assim como a Democracia Profunda e tantas outras, para ser decodificado e compreendido.

Exclusão, herança e tradição

O Brasil é um país forjado no conservadorismo e no autoritarismo, na ocupação violenta típica do período das navegações imperialistas europeias dos séculos XVI e XVII, pautadas pela usurpação de territórios, violação e destruição de civilizações originárias e escravização de povos, tudo em nome de Deus. Esse é um considerável legado que não se apaga.

Essas tradições não desaparecem com a eleição de um Governo progressista, elas tem longuíssima duração (Braudel) e permanecem como parte de um imaginário, reproduzidas em hábitos e comportamentos.

O poder das religiões, que não difere no Brasil, tem tradição secular na política dos levantes, de progressistas àqueles conservadores-militares. A experiência das Comunidades Eclesiais de Base CEBs entre os anos 1970 e 1980, foram um exemplo no país de forças contrárias ao autoritarismo, contribuindo de modo determinante para a organização dos trabalhadores em busca de melhores condições de vida em um regime fracassado, que consequentemente contribuiu para a queda da ditadura militar de 1964.

Muito distinto é o momento atual em que uma parcela considerável das igrejas evangélicas pendem ao conservadorismo. A partir do abuso espiritual de seus fiéis, centenas de cristãos no país hoje buscam tratamento por traumas psicológicos sofridos em igrejas. “O abuso espiritual é um primo próximo do abuso emocional — apesar de ferir mais profundamente, pois muitas vezes deixa as vítimas isoladas de Deus”.

Em nome da doutrina da ´batalha espiritual´, centenas de líderes evangélicos estabelecem controle e dominação usando como armas as Escrituras bíblicas, a doutrina ou seu “papel de liderança”, distorcendo a palavra Bíblica para atacar a realidade, a política e os diversos comportamentos sociais.

Destarte, defendo que estamos vivendo o início do fim da era neopentecostal. Há quem leia essas linhas e pense ‘quanta ingenuidade’. Contudo, novamente cito Braudel o qual trouxe-me como historiadora a visão da longa duração dos fenômenos.

Existe uma “ética universal” sobre o poder, que sustenta tal “profecia”, a de que nós humanos queremos ver os humilhados exaltados e os que mentem e usurpam o poder punidos.

Historicamente, a derrocada de qualquer império, movimento ou governo, tem a ver com sua incapacidade de tratar sua civilização com dignidade e justiça.

A Reforma Protestante que fez há pouco 500 anos, mesma idade da invasão do território que se tornou chamar Brasil, moveu um levante social contra a Igreja Católica e em particular contra a autoridade papal, frente aos que eram percebidos como erros, abusos e discrepâncias cometidos pela Igreja. A Reforma alterou as estruturas do poder católico de modo determinante, deslocou o poder da Igreja após mais de um milênio. O Estado no ocidente tornou-se laico.

As igrejas neopentecostais em boa parte representam hoje tal totalitarismo excludente, entre a mentira e o medo, produzem uma visão de mundo que leva seus fiéis para bem longe do Evangelho de amor ao próximo de Cristo.

Qualquer força política que incite o medo tem prazo de validade. Como seres humanos, quanto mais pressionados psicologicamente somos por intrigas e violências mais desgastados ficamos, isso a longo prazo e em massa geram traumas sociais, teorias de conspiração e distorções da realidade que vemos em regimes totalitários, como o fascismo, o comunismo (não vamos negar o que foi na prática) e o nazismo.

A fatura do neopentecostalismo pode demorar, mas ela virá, a memória e a história não tardarão em apresentar documentos (declarações, imagens, posts, discursos) como vestígios da moral conservadora neopentecostal às gerações futuras, as quais não mais imbuídas do senso de verdade parcial típico do tempo presente poderão afinal julgar seu comportamento e propósito.

Democracia XX.I

Vejo fakenews circulando nos meios evangélicos como a ideia de que Michel Foucault comporá o Ministério da Justiça do ministro Flávio Dino, ou pastores fazendo lives anunciando que o Governo Federal pretende destruir e enfraquecer a família brasileira retirando o Ministério da Família do Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos.

Ou mesmo declarações ainda mais violentas, como posts de pastoras com metralhadoras parafraseando Benjamim Franklin: “Quando todas as armas forem de propriedade do governo, este decidirá de quem são as outras propriedades”… Cuidado com a “beleza” do desarmamento!”. Passado o desespero momentâneo e a decepção por tal visão de mundo, distancio-me para olhar com olhos de longa duração.

Enxergo NÃOs muito claros nestas postagens, que precisam de espaço de escuta e muita separação de joio do trigo para serem incorporados ao novo momento da gestão pública. E ao refletir sobre esses NÃOs encerro com algumas considerações.

Atualmente no Brasil o discurso de ódio, medo e opressão vem de muitas igrejas neopentecostais. Entre erros, abusos e discrepâncias disseminam ou fundamentam análises políticas apoiadas pela palavra de Deus distorcendo o Evangelho.

São narrativas e leituras sobre o país e seus governantes que incitam fiéis a desconfiarem, odiarem, temerem e desprezarem as leis e quem pensa, se comporta e vive de modo diferente à sua.

Muitos riem quando vêem bolsonaristas chorando e pedindo a Deus pela queda de Lula, prisão de Alexandre de Moraes e intervenção militar. Não deveríamos debochar destas pessoas, muitas delas fazem parte desse ambiente de pavor.

Não seremos nós a mudar sua mentalidade, mas podemos humanizar essas relações ao trazê-las para a terra redonda em que vivemos perguntando o que precisam para vir conosco, na escolha que fizemos de eleger este governo, que estará aqui pelos próximos 4 anos.

Aplicada no caso das eleições de 2022 no Brasil, seria como dizer: Sinto (muito) que você perdeu a votação, mas a democracia venceu. De todo modo, você também faz parte deste país (talvez infelizmente – dada a preguiça que é ter que conviver contigo… mas faz), então, o que você precisa para vir conosco?

Outro ponto importante, diferente dos anos 1960 quando houve de fato um golpe de Estado no país, os movimentos sociais antes associados ao extremismo, não se colocaram em confronto ao bolsonarismo. O Movimento Sem Terra (MST), por exemplo, em post no final de 2022 diz que enquanto alguns aterrorizavam a democracia, o movimento organizou o Natal Sem Fome doando 100 toneladas de alimentos para famílias vulneráveis em todo o país. É sobre isso.

É vital associarmos a democracia à paz, à tolerância e ao respeito às diferenças e especialmente que os movimentos sociais sigam em suas agendas de luta por direitos e não pela violência cívica ou luta armada. A democracia é o regime político imperfeito que melhor garante que as diferenças convivam e se respeitem, assim como prega o Evangelho cristão.

Por essa razão, abordagens como a Democracia Profunda reivindicam a voz de quem perdeu. Porque para vivermos e convivermos em sociedade temos que tolerar e respeitar quem pensa diferente, isso inclui aceitar co-existir com conservadores, fundamentalistas, terraplanistas e neo-fascistas, por mais indigesto que isso seja.

Não basta fazermos todos parte de um mesmo país dividido, em um futuro breve teremos não apenas fakenews mas deepfakenews. Dada a tecnologia, em poucos anos, discernir quem mente em vídeos e posts será impossível. Para garantirmos que estamos no mesmo barco será basilar abrir espaço para ouvir todas as vozes e quando digo todas as vozes estou dizendo TODAS mesmo.

O Governo Lula tem um grande e urgente desafio: criar mecanismos e instâncias de escuta e debate que incluam, também, quem perdeu as eleições. Ouvir seus medos, anseios e reivindicações, tanto quanto ouvir as reivindicações dos que ganharam. Afinal de contas, 59 milhões de pessoas é quase o mesmo que 61 milhões, matematicamente falando.

É conviver com Pabllo Vittar e Damares Alves, ao mesmo tempo (desculpe Pabllo Vittar pela analogia). Ou, quem sabe da nossa eclética gastronomia venha a inspiração? No restaurante por quilo que é a essência do Brasil, por exemplo, bem cabe um sushi acomodado ao lado do macarrão…

Caso haja uma abertura para um “O que você precisa para vir conosco”, por certo virão respostas descabidas, mas também, questões e reivindicações fora da curva, esclarecimentos, menos defensiva e resistências de quem pensa diferente. Ao abrirmos a possibilidade de escuta veremos um saldo nas soluções que caso estivéssemos reunidos apenas nós os "iluminados progressistas" não pensaríamos, pois o diferente nos tira de nossa visão de funil.

Um dos lados tem que dar esse passo. O bolsonarismo já mostrou o que faz quando perde uma votação. Que sejamos inspirados pelo MST e pelo Evangelho, cuidando de quem mais precisa e "dando a outra face" (Lucas, 6:29).

Acho que se a Democracia falasse ela diria que espera de nós 'o exemplo' para sair dessa mais forte do que entrou.

Coríntios 1.13 fala sobre o amor, sem ele "mesmo que falássemos a língua dos homens e dos anjos, nada seríamos". Somos um país Laico, com quase cem por cento autodeclarados cristãos. Essa equação nos desafia a tolerar e a incluir.

A Democracia no Brasil precisará de muito amor para dar o passo em direção a quem perdeu o voto, para que a união e a reconstrução do país possam de fato começar a acontecer.

Regina Egger Pazzanese é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Como facilitadora de processos participativos faz parte da Rede Internacional Democracia Profunda Lewis. Foi a primeira instrutora credenciada do método Lewis Deep Democracy do Brasil. É, também, planejadora estratégica assessorando governos, fundações, institutos e empresas em seus processos de desenvolvimento organizacional, planejamento e governança, em busca de acolher "nãos" que contribuam para aprimorar políticas públicas e políticas institucionais.

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Written by Regina Pazzannese

PhD em História Social (USP). Instrutora credenciada Democracia Profunda Lewis. Facilitadora e Planejadora Estratégica.

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