A História do Poder, Eleições e a Política no século XXI

Regina Pazzannese
20 min readOct 6, 2016

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A história é construída por homens e mulheres no seu tempo presente como uma narrativa que se fabula. Sua condição de interpretar o acontecimento diz mais sobre a realidade em que se encontra imersa do que sobre o objeto a ser investigado, diria Certeau. Séculos de história e nos acostumamos a conhecer poucos personagens protagonistas responsáveis pelos grandes acontecimentos políticos e sociais da humanidade.

Um brevíssimo panorama, passando pelos povos da antiguidade, da idade média ou mesmo da era moderna, entre feudos, impérios e monarquias, reina absoluta a história de uma mínima casta, com muito poder e privilégio, a comandar decisões e povos. A narrativa sobre o poder esteve, portanto, secularmente concentrada nas personalidades privilegiadas e em sistemas de poder centralizados.

Sobre a grande maioria das populações a história dedicava bem pouca atenção, diga-se até pouco mais de cem anos, entendíamos, pesquisávamos e sabíamos muito pouco sobre as "classes" governadas. Concentrando todo o interesse e atenção aos governantes, o povo era retratado, grosso modo, como uma grande massa (turba) ignorante, iletrada e, em certas ocasiões, barulhenta ou violenta.

Para a era contemporânea, periodizada entre os dias atuais desde à Revolução Francesa de 1789, as decisões e o poder de representar os interesses das nações passaria a ser exercido por meio de governos, eleitos indireta e diretamente, compostos por políticos, que seriam influenciados por outras classes de poder, tais como, as seculares instituições religiosas e os exércitos, atualmente, as grandes corporações e o mercado financeiro e uma série de sub-agendas, desde a militar a das commodities etc. Tardaria para acomodar-se a estes interesses um modelo de inclusão do voto popular em um ambiente republicano, não sem pouca violência e luta por parte das populações governadas para realizar tais conquistas, entre fins do XIX e início do XX.

O século XX, neste sentido, representa uma guinada importante à inclusão das camadas populares às decisões sociais, e do mesmo modo, aos estudos, ao acúmulo de informação e à interpretação sobre as diversas matrizes sociais que delineiam as sociedades. Condicionados pela concentração de populações integradas aos grandes centros urbanos, pesquisadores, intelectuais e academia reconfiguram interesses sobre as chamadas “camadas populares”, ampliando estes personagens à trama da história, a fim de mirar configurações sociais, políticas e econômicas mais robustas e complementares que, em menor ou maior grau, possivelmente sempre estiveram ali, apesar de não terem sido objeto de interesse anterior.

Passamos, assim, o último século “correndo atrás do prejuízo” histórico pela distância com a qual mantivemos o passado distante da diversidade e pelo ônus interpretativo sob o olhar majoritário de quem nos governou, conectando muitos fragmentos e preenchendo venatoriamente lacunas, em um desafiador esforço e exercício sistêmico, contínuo e complexo de observar o lugar “dos governados”, ou de quem viu o poder ser exercido sobre si.

Estão nas entrelinhas da história vestígios sobre os hábitos e os costumes de escravos, mulheres, camponeses, na idade antiga à média, assim como pouco holofote direcionava atenção sobre os operários e operárias, as mulheres, os jovens e as crianças, no campo, ou na cidade, em sua maioria retratados como pobres, desprovidos, indigentes, analfabetos etc. até meados do século XIX. Entrelinhas estas que movem atualmente cientistas e pesquisadores em uma jornada de vida.

Assim, a complexidade das matrizes e das interações entre as populações, apesar de ter estado sempre presente, encontra a partir do século XX formas de conexão e de compartilhamento no contemporâneo que produzem efeitos, de epistêmicos à comportamentais, sobre os hábitos culturais e políticos, compreendidos de modo mais sistêmico e imediato.

O que mudou no mundo, chega-se à conclusão, foi muito mais a nossa capacidade de enxergá-lo, lê-lo, escutá-lo e interpretá-lo e não o contrário.

A velocidade com a qual nos conectamos com a informação contribuiu para esta nova leitura sobre as realidades? Definitivamente. O século XX nos lincou pelos meios de comunicação de massa e deu um salto paradigmático nesse caminho através da virtualidade. Potencializou e conectou virtudes e tragédias. Entre guerras, genocídios e muita destruição em larga escala, inaugurou uma era de interação entre as populações e tornou exponencial as possibilidades de contato, leituras de realidade e informações a serem compreendidas e compartilhadas, através da dimensão comunicativa que a era digital nos proporcionou.

Para se ter uma ideia melhor da mudança de velocidade e, por consequência, da percepção de realidade a que estamos condicionados vale conhecer a abordagem de Paul Baran (1962), ou mesmo, a perspectiva de modelos organizacionais proposta por Frederic Laloux.

E o que isso tem a ver com a democracia ou, especificamente, com as eleições de 2016 no Brasil?

“Ninguém” vence eleições municipais em várias cidades brasileiras

Como as sociedades sempre foram complexas e o que se transformou com velocidade exponencial no tempo presente foi a nossa condição de olhar e interpretar esta complexidade, vemos mais entrelinhas para além das metanarrativas que costumávamos enxergar: escravos, senhores feudais, reis e súditos, patrícios e plebeus, elite e povo etc.

Por isso, pode-se dizer que estamos permeados por um novo paradigma que desfoca das macroestruturas para atentar às múltiplas realidades. Nesse exercício de sístole e diástole, entre a lupa e a luneta, nos damos conta que quanto mais singularidades somos capazes de identificar na complexidade, menos cremos em uma síntese totalizante das sociedades (Certeau, 2000). E quando começamos a desnudar as entre-camadas deste "todo", soluções ou respostas até bem pouco tempo aceitas não nos contentam, ou convencem mais.

A relação causa-efeito pouco alcança os contextos sociais e políticos a que estamos conscientes na atualidade. Perguntas e respostas tornam-se parte integrante do novo paradigma de complexidade a que estão inseridos.

Este é um dos principais gargalos pelos quais governos ocidentais representativos (que se auto-intitulam Democracias, mas que não o são efetivamente) pautados pela agenda do sufrágio universal não nos convencem ou, muito menos, nos contentam mais. O fenômeno é fractal, se manifesta das eleições municipais brasileiras à corrida presidencial americana de Trump/Hillary, do Brexit europeu, ao plebiscito sobre o tratado de paz entre as FARC e o Governo Colombiano: votações sim-não quase 50% / 50% e abstenções ou nulos entre 35% a 45%.

O diagnóstico geral: Nossa "democracia" é binária, ao contrário de nossa realidade que é sistêmica e holística. Nossas decisões estão empobrecidas e não nos representam porque não dão conta de nossa multiplicidade no mundo.

Vamos localizar este argumento na realidade brasileira, tanto em âmbito federal, quanto estadual ou municipal. A série histórica de quem se abstém, vota nulo ou branco em praticamente todas as eleições fica na ordem dos 20%, desde a redemocratização. Um dado desde então presente que, assim como os governados (ou camadas populares) de outrora não parecia “saltar” aos olhos. Mudando "a lente", tal dado organiza e instiga agora um número de perguntas e potenciais caminhos interpretativos, contribuindo para a nossa compreensão da ideia e do propósito do que deve ser de fato uma Democracia e as formas de tomada de decisão em sociedades complexas e diversas.

O fenômeno que se destaca é ver que em cidades como São Paulo, entre as cinco maiores capitais do mundo em termos demográficos e entre as mais importantes em potencial econômico, “Ninguém” foi quem ganhou as eleições de 2016. No Rio de Janeiro, “Ninguém” vence com o dobro de "votos" entre o primeiro e segundo colocados, Crivella e Freixo.

Mais de 3 milhões de pessoas não se conectaram com as eleições na cidade de São Paulo. Assim segue para outras tantas capitais e municípios brasileiros.

Abaixo temos um gráfico* com alguns exemplos das eleições de "Ninguém", com resultados oficiais de São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Sorocaba, Ribeirão Preto e Porto Alegre, para 2016:

Os mesmos dados, para quem prefere tabelas:

Caminhos interpretativos

A partir do cenário posto, gostaria de explorar algumas alternativas sobre formas de avançar em tal conjuntura. A análise mainstream da grande imprensa ora ignora, ora trata a leitura da margem dos "20 %" como um fato, contudo, à superfície das interpretações do jogo político, umas vez que legalmente estes votos não valem. Outras abordagens interpretativas partem da proposta de não entender este dado como algo natural ao processo democrático, associando-o a um esgotamento do modelo de política eleitoral, ou pior, da própria política.

Nesse segundo espectro, uma abordagem simplista, porém facilmente aceita, associa o silêncio nas urnas ao desgaste, ou pior, à ideia de que a política não interessa mais aos cidadãos, porque todo político é ruim, como se na política só existisse corrupção, porque políticos sempre serão iguais e não há como mudar esta realidade, então, o melhor a fazer é não termos políticos fazendo política, mas sim, empresários, homens de negócios e pessoas que não estariam "contaminadas" por esta verve degradada que são os políticos e seus jogos. Contaminados e laureados pela agenda negativa e punitiva dos meios de comunicação de massa, os jornais e revistas, contribuem para apresentar a política precisamente como o espaço onde tudo e todos se corrompem.

Essa perigosa narrativa, que assim como tantas outras interpretações fáceis, nos levam em direção a escolhas autoritárias e excludentes. Tentam transformar o espaço de construção das relações humanas, do diálogo e da noção de bem comum, do que é republicano, isto é, da importância da vida pública, em algo descolado da realidade, como se pudessemos ser a-políticos, ou como se a política fosse "coisa" de especialistas.

Narrativa dominante

Esse discurso da política sendo ocupada por especialistas "não políticos" vem desde a década de 1980, com a ascenção de Margareth Tachter ao poder, servido às roupagens neoliberais como uma luva. Apertasse ou afrouxasse o figurino, de tempos em tempos, vemos o mesmo discurso ganhar força e eleger, como agora o fez em primeiro turno, vestido em um "pretinho-básico" (à Channel) neoliberal, o "empresário não-político" João Dória para a prefeitura de São Paulo.

Narra-se a trajetória do empresário como símbolo de eficácia, integridade e honestidade. Como se não soubéssemos que são exatamente as corporações e seus acionistas que ditam e mesclam interesses particulares aos dos governos. Como se não tivessemos já eleito no país centenas de "empresários não políticos" nada competentes, querendo ser cada vez mais ricos, corruptos e descomprometidos com o Brasil. Como se já tivessemos nos esquecido de 2008, de Wall Street e dos bancos privados norteamericanos e seus subprimes decrépitos arrasando a economia e a vida de milhares de pessoas, com impacto em escala global.

Como se os milhares de escândalos de corrupção envolvendo os poderes das grandes corporações, com ou sem seus governos, não aparecessem no cotidiano dos tabloides. Como se o 1% mais rico do planeta não fizesse parte desse mesmo núcleo de poder, que está nas corporações, nos acionistas e no mundo do mercado financeiro amalgamado ao poder governamental como se dali tivesse nascido.

Pois bem, tratar a política eleitoral como um dado per se, ou usá-la para descreditar a política do cotidiano e o seu papel social inerente, são comportamentos conservadores que já mapeamos há décadas. Eles ainda conquistam mentes e corações. Continuarão a conquistar enquanto a disputa narrativa for dominada por esse espectro interpretativo.

Nossa mirada, então, se propõe a partir de um outro ponto de vista. O de olhar para a política como um estado de consciência, de construção daquilo que é público (voltar ao seu significado grego). De enaltecer a política como a arte de negociação para compatibilizar interesses, interesses que não são de uma minoria, mas de todas e todos os cidadãos deste planeta.

Partimos da compreensão, muito mais antiga do que a conservadora, porém muito menos narrada, de que a política está e se faz no cotidiano. E neste sentido, pela política exercitamos a democracia e a democracia tem sua raiz em nossas relações cotidianas, diria Edu Rombauer.

A política se realiza por meio das escolhas que fazemos, não apenas em nossa vida individual, mas a partir de uma perspectiva coletiva, que se manifesta: na forma como consumimos, como nos transportamos, como nos relacionamos com outros seres humanos, basicamente, em tudo.

A política é uma dimensão vital da existência humana, ela está para muito além dos panfletos acusativos de jornais, ou dos bastidores do poder mesquinho que tem tanta força de se fazer parecer uníssono nas nossas instituições públicas. É desse lugar que pretendemos iniciar nossa perspectiva.

Voltemos à democracia e aos problemas do sistema eleitoral brasileiro. Mencionamos que as escolhas sendo realizadas em momentos eleitorais, além de não representarem uma parte significativa dos cidadãos, tem concentrado as decisões entre um sim ou não, uma "esquerda" ou "direita". Esse é o contexto em que vemos aumentar o cenário das polaridades, haja casos em que a diferença entre escolhas diametralmente opostas tem adquirido margens de 1% a 3%. Já apresentamos alguns exemplos acima.

Estes dados agrupados revelam indicadores basilares para a leitura sobre a insustentabilidade de um modelo eleitoral, mas mais do que isso, de um formato de "democracia" a ser superado, em toda a sociedade ocidental contemporânea. Se metade de uma população pensa de forma oposta a outra, há muito mais em jogo e a ser negociado do que uma eleição nos moldes eleitorais atuais seria capaz de dar conta.

Novamente, nossa binária "democracia" não nos representa, ao contrário, ela empobrece a perspectiva e os interesses de uma multiplicidade de vozes que compõem nossas comunidades e nações.

Complementar a esta percepção, devemos fazer uma leitura também sobre o número significativo de votos em abstenção/nulidade ou brancos que estiveram desde sempre conosco. Considerando que cientistas políticos por certo fizeram inúmeras pesquisas sobre estes perfis capazes de eleger "nenhum". Por certo, a partir destas informações, devam ser produzidas interpretações sobre este silêncio ou resignação da vida pública, diga-se, sobre o único momento institucionalmente obrigatório de participação política no país.

Como ativistas, cientistas e cidadãos interessados em pensar e construir uma política verdadeiramente mais inclusiva e inovadora, devemos usar estas informações produzidas e produzir conhecimento sobre o diagnóstico posto, pois para encontrar soluções novas, criativas e que tentem conectar estes sujeitos a uma plataforma de tomada de decisão, precisamos observar e entender estes silêncios. São sujeitos que não se interessam pela política, não creem nos políticos, talvez não se identifiquem ou sejam céticos com o modelo de tomada de decisão dos governos representativos atuais?

Novamente a narrativa conservadora virá com respostas rápidas para este cenário. Mas devemos, obviamente, ir para uma camada mais profunda de perguntas e respostas, a fim de entender a raiz, ou as escalas de constructo e formação de repertório que os cidadãos e cidadãs promovem quando optam pelo silêncio nas urnas. Dali podemos extrair princípios para nortear as nossas narrativas e contribuir para uma desconstrução inicial do lugar comum que a política foi sendo consolidada pelo campo conservador, tanto pelas grandes mídias, quanto por políticos e ditos "não-políticos", majoritariamente formado por homens, que ocupam cargos públicos com a principal intenção de beneficiar a si próprios e a interesses específicos.

Qual será então nosso papel, como ativistas, cientistas e seres políticos, na construção desse outro olhar para os mesmos dados e manifestações? Que oportunidades seremos capazes de produzir e reconhecer a partir destes manifestos silenciosos? Dados são valiosos Kairós.

A Política Sexify do Cotidiano

Quem incorporou a política como dimensão do seu cotidiano sabe o quanto ela pode ser sexy, atraente. Desde vermos realizados sonhos e propósitos maiores do que a nossa existência rotineira, até a compreensão e percepção de estarmos realmente conectados a algo maior do que a nossa trajetória individual seria capaz de nos proporcionar.

A política trazida para o cotidiano, ou seja, a proposta de poder realizar nossas vidas individuais a partir de alguma conexão com o mundo coletivo que nos cerca, pode nos dar uma força tremenda em busca de auto-conhecimento, entusiamo e nos conectar o sentido de existência mais significativo ao qual cabe uma parcela de contribuição de cada um neste planeta. Ativar o nosso Ser Político** amplia o nosso estado de afeto pela sociedade, isso gera amor e sabemos que amor gera felicidade. Raiva e ódio não.

Relacionamentos humanos baseados em pertencimento, aceitação e amizade geram felicidade e entusiamo em nossas vidas. Sabemos também que, apesar de o dinheiro ser uma dimensão necessária à sobrevivência, vemos pessoas que primam pela busca apenas material e muito individualistas serem, muitas vezes, sombras e personas de um ser muito mais profundo acumulado em angústias e vazios existenciais.

A política no cotidiano, por certo, pode também gerar muita frustração e sensação de desesperança quando vemos potenciais processos virtuosos se “equilibrando na mediocridade" e sendo diluídos pelas forças conservadoras no tempo e no espaço (Gramsci). Contudo, o despertar e a consciência para o ser político mantém a integridade do self, a qual Darcy Ribeiro se referia ao dizer sobre seus fracassos serem suas vitórias e que detestaria estar no lugar de quem o venceu.

Ter no horizonte a dimensão sobre o próprio papel neste mundo, sem a expectativa de um dia cumpri-lo, mas preenchendo-o com algumas respostas enquanto se vive e, ao mesmo tempo, ser rodeado por relacionamentos diversos, plurais, enriquecedores e significativos está "all inclusive" nesta jornada.

Tantos de nós já estão no sexify da política cotidiana sem muitas vezes notar. Somos muitos: professora/es, artistas, cuidadora/es da saúde humana, servidora/es pública/es, ativistas, facilitadora/es de diálogos, lideranças organizacionais e comunitárias (de todos os grupos sociais), cientistas, pacifistas etc.

Quem “ama” o que faz e que pode contribuir para o mundo ao seu redor ser um lugar mais inclusivo, igualitário e tolerante tem em seu cotidiano esse propósito como pressuposto. Propósitos esses que são práticas sociais e que despertam o sentimento de gratidão para quem os reconhece. Gosto da imagem do livro de Gustavo Tanaka que vislumbra um futuro onde essas práticas (e profissões) serão as mais valorizadas, exatamente por sua vocação pelo bem comum.

E a política sexify do cotidiano no Brasil?

Uma das coisas mais fascinantes do campo da historiografia é poder entender a cultura política de uma sociedade a partir de uma perspectiva de duração mais longa (Braudel). Não podemos contar com a nossa memória para "ler" a realidade, muito menos, construir a nossa percepção do mundo apenas a partir da televisão e dos meios de comunicação de massa. Sabemos bem que corremos sério risco de nos tornarmos preconceituosos e muito limitados em nossas análises, caso o façamos.

O estudo da história assume um papel de fundamental importância nesse sentido, pois assim como os indivíduos desenvolvem suas heranças familiares, a sociedade faz o mesmo movimento, trazendo heranças que são reinterpretadas e remodeladas ao longo do tempo pelos sujeitos e suas experiências. Como aprender, então, com esta cultura política e com o nosso passado? Temos afinal uma história de cultura política do cotidiano sexify no país?

O recorte proposto para esta questão volta para o período de ditadura militar (1964–1985). Mas o recorte é ainda mais preciso, para o fim dos anos 1970, uma época em que acredito ter se configurado uma política do cotidiano das mais sexys e que estimula ativistas, pesquisadores e cientistas a analisá-la desde então.

Tentando ser breve, foi durante o final dos anos 1970 que emergiram nas grandes cidades brasileiras "novos personagens em cena" (Sader). Formando o caleidoscópio de uma "nova" esquerda que semeou boa parte do que conhecemos hoje como sociedade civil organizada, que inclui desde personalidades que ocupariam posições em todos os grandes partidos brasileiros até o campo do terceiro setor, das ONGs, das organizações de desenvolvimento humano, das Fundações, Institutos etc. Foi naquele ambiente em ebulição dos anos 1970–1980 que surgem os movimentos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, dos grupos de bairro popular, das comunidades eclesiais de base, de um sindicalismo renovado, de novos partidos políticos, como o PT, PSDB etc.

Construídas por entre as brechas dos mecanismos de controle do estado autoritário desde 1964, o ambiente dos bairros populares nos anos 1970 formulará novas narrativas, experiências políticas e resistências frente ao regime militar, espaços em que se encontrariam militantes, religiosos, operários, intelectuais e artistas, com o desafio de pensar novos caminhos e formas de comunicar e representar tais práticas em curso.

O que mais interessa neste texto é mostrar que há uma relação entre o contemporâneo e aquela década que não se desconectou. Estamos vivendo um ciclo de média duração, como diria Braudel, longe de ser esgotado. Em 1970, foi a partir da relação entre o campo artístico e intelectual, que acredito possa ser comparado hoje ao campo do ativismo e da "nova política", articulados ao projeto progressista da Igreja Católica, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), em contato com os bairros populares das periferias das grandes metrópoles, que experimentamos um dos momentos de maior riqueza do que há de mais sexy e essencial da alma política nacional.

Verdade que não temos atualmente um projeto de Igreja Católica voltado para o ativismo comunitário, não obstante, temos lideranças espirituais de diversas práticas religiosas preocupadas com questões humanitárias e comunitárias. Verdade também que estamos transitando de um paradigma das metanarrativas para uma percepção mais sistêmica e descentralizada da política e que, neste sentido, talvez não encontremos tantos movimentos de massa e projetos uníssonos para nos ancorar dentro das instituições como naquelas décadas.

Contudo, temos algumas novidades a nosso favor, que acredito serem respostas novas para um mesmo eixo político que esteve presente desde então: o da importância e defesa da democracia (naquele período interditada) e pelo acolhimento da pluralidade de vozes da sociedade que não eram consideradas nas políticas públicas.

Ou seja, como iremos defender e lutar em conjunto, ou em frentes amplas, pelas agendas sociais para transformar o Brasil em um país de condições sociais mais igualitárias e retomar/fortalecer a democracia?

Trabalho com a hipótese de que haviam dois principais movimentos sendo articulados em torno da "nova esquerda" no fim dos anos 1970. Entre um projeto: a) que focava na autonomia das comunidades populares e que acreditava no cotidiano da experiência política nos bairros e nas grandes fábricas a ser fortalecido em conjunto com “os intelectuais” para termos uma classe popular emancipada e ativa em sua plenitude política, e b) que personificou na figura de Lula, através do novo sindicalismo e na fundação do PT, a disputa para dentro do campo eleitoral e das instituições políticas para servir de representante dessa conscientização popular.

Os dois movimentos, a) autonomia do povo e b) partido, foram incorporados no projeto partidário petista, contudo, o segundo, de ocupar o território da política institucional, acabou por mobilizar muito mais energia e atenção da “nova esquerda” do que a ida aos bairros nas décadas que viriam.

Uma Virada Política para o século XXI

Os movimentos da política seguem o que a sociedade é capaz de produzir enquanto constrói sua própria realidade. A política no Brasil do século XX foi marcada pela personificação de lideranças fortes e carismáticas, independente de terem sido de "esquerda" ou de "direita". A metanarrativa, ou a política de classes, precisa de líderes personificados para concentrar a representatividade.

A política no Brasil do século XXI está sendo configurada sob outros pressupostos, como já bastante apresentado por aqui. E o que isso implica em termos concretos para a nossa prática da política do cotidiano? Significa que teremos pluri lideranças, as lideranças de hoje serão lideradas amanhã, não haverão papéis fixos de poder, mas compartilhamento para a tomada de decisão.

Já estamos colhendo os frutos da colaboração e da construção participativa de projetos e programas governamentais, estamos preparando uma escuta ativa e com isso vamos aprimorar a nossa visão e colocar a democracia a nosso serviço: Democracia participativa, colaborativa, direta. Vamos qualificar a nossa forma de debater, de negociar em grupo e de concordar e discordar.

No XXI, a política se configurará a partir da inovação tecnológica, mas também, da inovação social. Os caminhos apontam para uma conexão glocal. Nos anos 1970 eram os bairros populares, agora são as comunidades, os pequenos municípios, qualquer bairro independente de classe social, a ser ocupado por pessoas comuns entusiastas da política do cotidiano. Gente que quer transformar as suas comunidades e tem ferramentas para isso.

A participação social será travada em um ambiente sistêmico, em que poderemos ao mesmo tempo tomar grandes decisões nacionais, quanto pontuais, em nossas redes e grupos de convívio. De uma política municipal à reunião do condomínio do nosso prédio, já temos tecnologias virtuais e humanas para dar estes passos.

Estamos mapeando os ecosistemas, organizando, sistematizando hubs de informações e dados públicos de governos para auxiliar no monitoramento da gestão pública e na tomada de decisões. Experiências como o Transparência Hacker, Update na América Latina, Youth and Land que monitora a governaça jovem internacionalmente, tantos outros. Muitos de nós, ativistas e hackers da política, tem papel fundamental neste trabalho.

A área acadêmica também inova ao protagonizar pesquisas sobre governos abertos, a chamada e-democracy, temos já um centro de referência internacional da agenda sendo gerido pela Universidade Federal da Bahia. As próprias casas parlamentares, do executivo e legislativo tem plataformas de transparência e participação, para contribuir com este arcabouço de dados e inteligências à serviço das nossas práticas coletivas que fortalecem as políticas públicas e a conexão entre sociedade civil e poder público.

Quanto aos partidos políticos, não há o que temer. Não estamos aqui propondo a extinção das instituições políticas, ambas conviverão e aprenderão a co-existir. Cada vez mais se configuram nas eleições campanhas e pessoas/coletivos que já sairam do paradigma binário, jovens ativistas que decidiram ocupar a política institucional propondo uma relação bem mais direta com seu eleitorado. De uma Bancada Ativista, que teve em sua primeira campanha mais de 70 mil votos, à Mandatos Coletivos (em que um grupo de pessoas participa como candidatos), o Goiás acaba de eleger um destes mandatos em Alto Paraíso.

Mas alguém pode dizer que sem partido não há projeto político. O Collor era um sem partido e veja o que aconteceu… Acontece que partido não garante unidade, nem projeto, muito menos que seus membros o seguirão, vis-à-vis a nossa política atual. Os partidos continuarão a existir até quando fizerem sentido para as pessoas. Contudo um alerta, seu modelo de pensamento também está baseado na ideia de representatividade de massa, não é sistêmico, não é dialógico.

Já um candidato que constrói a sua agenda a partir das pautas dos seus eleitores terá uma relação direta com quem o escolheu. E iremos testar, aprimorar e fortalecer a democracia direta, começaremos por contextos comunitários e locais em que o poder se manifestará com e para as populações de verdade. Aprenderemos, prototiparemos e iremos, em poucas décadas (quem sabe até 2020), para a grande escala.

Teremos uma democracia próxima, onde o parlamentar encontrará seu eleitor na rua, fará reuniões com grupos de suas comunidades, prestará contas pessoalmente. Ficará na política institucional quem tiver vocação e vontade de servir ao público e o título de servidor/a público/a caberá decisivamente à função exercida.

Assim a política do cotidiano inspirará a/os eleitora/es e cidadã/os que verão lastro concreto entre as suas demandas e as agendas das políticas públicas que devem servir à promoção de uma sociedade melhor para toda/os nós. Já temos exemplos concretos da política do cotidiano sendo tratada desta forma, na Inglaterra, na Suíça, na Islândia, por exemplo. São modelos em vigor que quanto mais fizerem sentido e se mostrarem melhores para as suas comunidades, mais serão incorporados.

É na prática da política cotidiana que transformamos eleitores e consumidores em cidadãos. É fazendo política que nos tornaremos pessoas autônomas e poderemos crescer como sociedade.

O papel do ativismo na política do cotidiano

Os intelectuais e artistas dos anos da ditadura militar (1964–1985) são os ativistas do presente. Cada qual em sua área de atividade conectados pelo desejo de ver um futuro próximo mais igualitário, transparente, colaborativo, democrático e sustentável para o planeta colocará sua prática social à serviço da política do cotidiano.

Com a perspectiva do glocal, o ativismo hacker, divulgará, informará e espalhará dados da gestão e da administração públicas em plataformas acessíveis para toda/os a/os cidadã/os. Monitoraremos políticas e políticos, de orçamentos públicos à agenda ambiental. Construiremos projetos de lei de modo efetivamente compartilhado com o poder público, acompanharemos de perto seus mandatos e iniciativas.

O ativismo da participação ampliará e fortalecerá as práticas de diálogo, que são tecnologias sociais, através de facilitadora/es, mediadora/es e conectora/es nos ambientes em que a política deve ser sexy, nos coletivos, nos fóruns e conselhos participativos, nos grupos gestores, nas reuniões de condomínio, nos debates educacionais das escolas públicas e particulares.

Onde um grupo pessoas estiver presente para definir qualquer demanda coletiva, este será um espaço de participação democrática. E as novas tecnologias de participação que antes não possuíamos, agora se fortalecem e qualificam de modo exponencial para as tomadas de decisão coletivas. Do Ativismo Delicado de Alan Kaplan, à Democracia Profunda de Arnold Mindell, da Ontologia da Linguagem, do Art of Hosting, à Ecologia da Aprendizagem de Humberto Maturana. Todos à nossa disposição. Para saber mais sobre metodologias de diálogo ver Edu Rombauer

Para concluir, as ferramentas tecnológicas e socias estão postas, as sociedades estão preparadas para a mudança e vivendo a transição neste instante. Para quem tem dificuldade de olhar um futuro de oportunidades à frente, sugiro uma desconexão com agendas negativas da grande imprensa e colocar o seu ser político na frequência sexify que necessitamos para vibrar a mudança do mundo que queremos e estamos construindo, tudo isso, enquanto contamos sobre ela.

  • Agradeço ao José Paulo Guedes Pinto pela leitura e sugestões ao texto.

* Agradeço ao movimento #Vempraroda http://vempraroda.com.br que tem abarcado um grupo de mentes e corações especiais, de onde venho me inspirando para formatar estas ideias. Dudu Rombauer, Denise Curi, Lala Deheleinzen, Gui Coelho, Camila Rigo, Mari Miranda, Phydia, Oriana e muita/os mais.

** Agradeço pela oficina O Ser Político, promovida pelo Instituto Fonte (por Edu Rombauer, Denise Castro e Rogério Magon), que permitiu com que eu refletisse de modo mais sistemático sobre meu Ser Político.

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Regina Pazzannese
Regina Pazzannese

Written by Regina Pazzannese

PhD em História Social (USP). Instrutora credenciada Democracia Profunda Lewis. Facilitadora e Planejadora Estratégica.

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