Sejamos toda(o)s facilitadores
Conheci a profissão de facilitadora no ano de 2005, momento em que fui convidada a fazer parte do time que conduziu as mesas de diálogo da 1a Conferência Nacional de Cultura (CNC), do Governo Federal. Foi um encontro com a certeza de um destino, quando a alma abraça o pragmatismo e a intuição sussurra na mente motivos concretos para sinalizar: "estamos no caminho certo, Regina".
Naquele momento eu não era tão principiante no campo da mudança social, já tinha contribuído como assessora do programa de Artes e Cultura do Fórum Social Mundial (FSM), entre 2003 e 2004, sido produtora executiva em umas edições do Le Monde Diplomatique Brasil e trabalhado no marketing da Revista Caros Amigos, entre 2002.
Fazia alguns anos que havia migrado do mercado empresarial para o universo do terceiro setor, ainda no meio da faculdade de publicidade e propaganda. Escolhi a demissão, ganhar metade do salário, zero benefícios e abandonar um futuro sonhado pela minha família, de ver um dia sua primogênita diretora de uma prestigiada multinacional (nos anos 2000 ainda não tínhamos CEOs).
Fora o ativismo, o FSM foi meu début para ver de perto como uma experiência de democracia ocidental em globalização incubava uma agenda internacional de interesse público, protagonizada no hemisfério sul e sediada no Brasil, no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, entre 2000 e 2004, por organizações da sociedade civil da América Latina e Europa.
Toda essa introdução para dizer que o meu deslumbre ao estar pela primeira vez aprendendo as ferramentas e éticas da facilitação de processos participativos tinha uma certa base de ceticismo e de entendimento das limitações das tentativas de fortalecer espaços civis pela democracia, seja no Brasil ou fora dele.
Passados quase 20 anos dessa 1a Conferência Nacional de Cultura, quase encerrando 2022, perto de completar 45 anos de idade na semana que vem, permaneço uma entusiasta, além de extremamente grata, às dezenas de mentes e organizações dentro e fora do país que estavam nos anos 1970 construindo um futuro para a democracia, muito além da retórica e do discurso.
Me pergunto se essas lideranças, acadêmicos e gestores públicos tinham ideia do que estavam criando.
Tenho dito há alguns anos que se tornar profissional de facilitação é apenas uma possibilidade dentro do campo da facilitação.
Atuar como facilitador no futuro será um pré-requisito das chamadas soft skills (habilidades sócio comportamentais e emocionais), que traduzem a forma como avançaremos em nossas relações, sejam elas profissionais ou pessoais, dentro e fora de nossas casas.
O letramento emocional que o campo da facilitação induz está relacionado à inovação da linguagem e a prática de tomada de decisões robustas em um mundo cada vez mais complexo, de escolhas sistêmicas, em uma sociedade em busca de paz e regeneração.
A facilitação estará cada vez mais presente em nossas vidas (talvez ela até mude de nome, para algo mais trend). As habilidades de facilitação farão parte da forma de agir de quem busca transformar suas relações pessoais, sustentar saúde mental no seu ambiente de trabalho e, mesmo que de modo indireto, contribuir para deixar o mundo um lugar menos intolerante e agressivo.
Há alguns poucos anos jornais como Estadão e a Folha de São Paulo tem trazido referências sobre o campo da facilitação, mesmo que não citando diretamente a prática da facilitação, mas algumas abordagens específicas, como a Comunicação Não Violenta (CNV). Um dos últimos textos que merece destaque veio da jornalista Isabel Clemente, que sistematizou de modo brilhante no artigo Como prevenir e reduzir a polarização experiências internacionais por inovações para a paz.
Entrei em contato com Isabel Clemente e conversamos, disse a ela que estou na expectativa por um próximo artigo sobre as experiências brasileiras no campo das inovações pela paz.
Enquanto o artigo dela não sai, deixo essa modesta contribuição sobre as experiências brasileiras, por quase duas décadas de oportunidades e convicção sobre uma profissão que tem transformado de modo contínuo minha forma de liderar e conduzir processos e projetos, de me comunicar e estar em comunidade.
A facilitação no Brasil
Quando terminei a faculdade de Publicidade, poucos anos depois migrei para a História. Foi uma longa jornada, concluída em 2018, quando me tornei doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Como não poderia deixar de ser, explorei o período de redemocratização no país, para mapear experiências de reorganização da paz, dos acordos, das novas negociações naquele ambiente de uma nova oportunidade de praticar a democracia no Brasil.
Digamos que os anos 1980 foram um marco nacional para a experiência de democracia em que a facilitação no país surge institucionalmente.
Movidos pelo desafio de refletir e desenhar a gestão pública para conduzir um Estado que a serviço dos interesses e necessidades de seus milhões de cidadãos e das agendas sociais que estruturaram a Constituição de 1988, deste contexto surge o especialista em facilitação.
Muitas organizações e movimentos para dar conta da nova experiência com a democracia importaram conceitos e ferramentas, como o Planejamento Estratégico Situacional (PES) do chileno Carlos Matus, a técnica alemã do Metaplan, para criar a primeira experiência de Orçamento Participativo do mundo, na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Passadas quatro décadas temos novamente a oportunidade de experimentar uma nova fase da democracia no país. Faz poucas semanas o debate do futuro da participação social tem tomado as redes, articulistas, pesquisadore(a)s, organizações da sociedade civil e o futuro governo, que já antecipou um Seminário no início de dezembro sobre o tema.
Temos uma nova onda de oportunidade para praticar a democracia, que em sua essência nada mais é do que garantir que a voz de todas e todos sejam incluídas o máximo possível nas decisões coletivas, sejam elas de seus bairros, municípios, estados ou do Governo Federal.
O ditado 'é errando que se aprende' vai ao encontro desta ideia de praticar a democracia. Imperfeita há mais de 2 mil anos, ainda assim nosso melhor modelo político, tem pela primeira vez instrumentos e abordagens da inovação pela paz à disposição para nos apoiar nessa jornada.
Por essa razão meu texto é um convite-agradecimento para quem sente uma intuição sobre conhecer, ou seguir neste caminho.
Agradeço pela Democracia Profunda Lewis, de Myrna Lewis, Amy e Arnold Mindell, da qual sou instrutora no país, por terem me ensinado a acolher as vozes divergentes e a reconhecer a sabedoria de um Não.
Pela formação em Conversas Regenerativas, da Pacto Organizações Regenerativas, que agregou a Comunicação Não Violenta à minha jornada.
Pela formação basilar da H+K Curso de Facilitação mais tradicional do país, de Heloisa Nogueira, Flora Marin e Klaus Shubert e pela parceria de quase 4 anos, entre 2010 e 2013, onde me “formei na prática” como planejadora estratégica, com Leandro Lamas Valarelli, o qual considero um dos maiores facilitadores do Brasil.
Pela generosidade das abordagens Estruturas Libertadoras e do Art of Hosting por deixarem seu arcabouço teórico-prático à disposição gratuitamente para quem quiser aprender e por ter aprendido muito com Eduardo Rombauer nos meus primeiros anos como facilitadora.
Cito, ainda, formações e o trabalho importante de parceiros que tem feito a diferença na construção de conversas com diálogo e paz no país: o Conversas Corajosas, de Diego Lopez, o curso de CNV da Sinergia Comunicativa, de Sandra Caselato e Yuri Haasz, a Fluxonomia 4D, de Lala Deheinzelin, o Teatro da Presença Social, da Teoria U de Otto Scharmer, a Ontologia da Linguagem, de Fernando Flores e Rafael Echeverría, o pensamento ecológico de Humberto Maturana, traduzido no laboratório sociocriativo de André Martinez.
Estas abordagens e ferramentas estão todas no Brasil, a serviço de uma melhor relação de convivência e diálogo entre as pessoas, disponível para qualquer organização.
Não tenho receio de afirmar que estamos vivendo uma década única no campo da mudança social. Os desafios que temos que superar para construir uma nação mais inclusiva, criativa e plural nunca tiveram tantas referências e acesso a metodologias, ferramentas e abordagens de inovação para a paz.
Deixo o convite para que sejamos, então, toda/os facilitadores.